O Papel de Salvador - Hugo Lapa
É muito comum de se encontrar, nos dias de hoje, pessoas que sofrem do terrível vício do papel de “salvadoras”. Muitas vezes, o papel de salvador bloqueia nossa vida de tal maneira que o resultado acaba sendo a depressão. Salvador é todo aquele que quer ajudar os outros em excesso. É aquele que se oferece ou se doa demasiadamente a outros, e a partir desse comportamento surge uma série de problemas. Vamos entender melhor neste artigo no que consiste o papel de salvador e o que cada pessoa pode fazer para se libertar dessa tendência. Explicaremos tudo em tópicos curtos para que as ideias se tornem mais acessíveis e objetivas.
Em primeiro lugar, o “salvador” é todo aquele que vive mais a vida dos outros do que a sua própria vida. Ele se preocupa mais com o que acontece com outras pessoas do que consigo próprio. Ele pensa muito na vida dos filhos, na vida dos pais, na vida dos irmãos, na vida dos familiares e na vida alheia do que em suas próprias questões. Não apenas pensa mais na vida de outrem, como busca agir de forma a auxiliar, instruir, beneficiar ou amparar os outros em muitas situações diferentes. Com esse comportamento, o salvador passa a ser apenas um espectador da própria vida, fica apenas assistindo sua existência passar diante dos seus olhos, e não mais participa dos principais eventos, posto que passou a viver apenas pelos outros.
A maternidade sempre foi um terreno fértil para a expressão do papel de salvador. É muito comum ver mães reclamando dos filhos, alegando que se sacrificaram por eles, e que depois os filhos não reconheceram os esforços feitos. Quantas mães passam a viver apenas para ajudar seus filhos? Quantas mães procuram sempre evitar a todo custo que seu filho se prejudique pelos seus próprios atos? Quantas mães visam superproteger os filhos e coloca-los numa redoma de vidro? Quantas mães buscam fazer pelos filhos aquilo que cabem apenas a eles próprios? Esse comportamento atrasa a vida de ambos, bloqueia o desenvolvimento do filho e torna a mãe insatisfeita com a sua vida.
Aqui podemos adiantar que os salvadores sempre esperam por um reconhecimento que não pode nunca preencher a lacuna que eles mesmos deixaram em suas vidas. Esse vazio foi criado pela perda das melhores partes de nossas vidas que se esvaíram enquanto estávamos mais preocupados em viver a vida dos outros. É certo que, quem vive a vida do outro acaba perdendo a sua própria vida, e a consequência dessa escolha não poderia ser outra senão a frustração e um sentimento de perda de si mesmo. O salvador não vive com os outros, ele vive em função dos outros. Toda a sua vida se encaminha, se organiza e se programa para a resolução dos conflitos alheios.
O salvador sempre presta essa ajuda de forma bastante exagerada, e muitas vezes é uma assistência não solicitada. Todos deveriam ter consciência de que só é possível amparar uma pessoa quando esta reconhece que tem um problema e quando pede nossa ajuda. Quando alguém não sabe que tem um problema, ou mesmo não quer melhorar, de nada adianta insistirmos no auxílio a essa pessoa. Só é possível resolver algo quando há a percepção de um problema. Se a pessoa não reconhece o que tem como um problema, talvez a melhor saída seja permitir que ele sinta na pele as consequências de seus atos. Por outro lado, ninguém pode ajudar eficazmente uma pessoa quando esta se nega a fazer algo por si mesma. O salvador é “especialista” em se meter na vida dos outros e encontrar brechas para impor sua visão das coisas. Como o salvador perdeu o controle de sua própria vida, ele deseja conquistar o controle da vida dos outros.
Outra característica do salvador é suas constantes tentativas de resolver a vida de alguém de tal forma que a pessoa não precise fazer nada ou quase nada para se melhorar. O salvador cultiva a crença de que é possível uma pessoa solucionar os problemas da outra, mas obviamente essa ideia é totalmente falsa. Ninguém pode fazer pelo outro aquilo que só cabe a ele fazer. E aqui entra outra característica do salvador: o desejo de que outras pessoas fiquem dependentes dele. Muitas vezes a ajuda prestada pelo salvador visa preparar o terreno para que seja criada uma relação de dependência entre salvador e a pessoa “salva”. A atitude de salvador acaba sendo, para algumas pessoas, uma forma de se conquistar poder, ou de instituir uma relação de ordem e mando. “Eu te ajudo, mas você deve fazer o que eu quero”.
Um dos artifícios muito utilizados pelo salvador é o jogo da culpa. Em alguns casos, o salvador fica ressaltando ao outro “o quanto o ajudou”; “o quanto ele melhorou”; “o quanto ele se sacrificou por ele”; “o quanto ele precisa dele”; e obviamente “o quanto ele lhe deve por isso”. O salvador deseja atenção, afeto, carinho, além de outros ganhos psicológicos. Muitas vezes o salvador pode alegar que “não quer nada em troca”, mas isso pode ser mais um artifício, até mesmo inconsciente, para ser reconhecido pelos outros pelo seu desprendimento, e assim, quando o salvador precisar, alguém também possa vir em seu auxílio e também se “sacrifique” por ele. Fica claro que o salvador faz para o outro sempre esperando algo em troca. Ele fica sempre na expectativa de algo que as pessoas nunca vão lhe dar, o reconhecimento de sua bondade. Essa sensação de ser taxado como uma pessoa “boa” alimenta seu ego, e ao menos por alguns instantes ele se sente alguém importante, que fez a diferença na vida de outros. O sentimento de autoimportância pode ser uma forma de compensar uma vida bastante desinteressante, sem graça e cheia de decepções. O salvador pode não se sentir relevante ou interessante, e por isso ele necessita que os outros digam que ele foi importante na vida deles para que, somente assim, ele possa sentir seu valor.
Um fato que precisa ser exposto aqui é uma faceta preponderante da dinâmica psicológica de algumas pessoas que vestem a capa do salvador. É certo que, muitas vezes, uma pessoa que apresenta uma bondade um pouco exagerada pode conter dentro de si ao menos alguns resquícios de uma raiva reprimida. No entanto, o salvador repele essa raiva e a vê como algo terrível e vergonhoso. Ele pode se enxergar como sendo “bom demais” para conter aquela raiva. Por esse motivo, para que essa raiva ou mágoa não se sobressaia, ele se dedica a provar a si mesmo que é bom, e nesse sentido, precisa de todas as formas demonstrar a si mesmo e a outros o quanto é bondoso, altruísta, caridoso e solidário.
A insegurança e a falta de autoestima do salvador muitas vezes podem leva-lo a tentar compensar tudo isso com a percepção de que é alguém muito benevolente. Nesse processo, ele pode tentar compensar a baixa estima com um complexo de superioridade. Essa inclusive é uma característica muito comum de pessoas arrogantes e soberbas. Muitas delas, lá no fundo de si mesmas, são pessoas inseguras, frustradas e cheias de fraquezas, que visam ocultar esses atributos sob a capa da soberba, com a crença do “eu sou melhor do que você” ou principalmente “Ele não é tão bom como parece”. Nesse sentido, o salvador também possui um complexo de superioridade, mas como ele encara como bastante difícil sentir-se melhor pela via do mérito pessoal, ele tenta sentir-se superior pela via de uma suposta benignidade. Ele pensa “sou melhor porque sou uma pessoa boa e ajudo os demais”.
O salvador quase sempre vê os outros como ingratos, posto que ele sempre acredita que merecia mais elogios e mais reconhecimentos pelo seu trabalho em prol de alguém. Como muitas vezes os outros não o reconhecem, ele fica sempre com a impressão de que o outro não agradeceu o suficiente, ou que o outro pensa apenas em si mesmo. O salvador sempre acredita que o outro é muito egoísta e autocentrado para reconhecer os bons feitos praticados por ele. Nesse sentido, o salvador vive sempre frustrado, pois ele faz algo visando o reconhecimento, o agradecimento, e o status de “bom”.
O salvador ajuda os outros também para tentar moldar o outro a sua vontade de como o outro deve ser, mas faz isso sempre exalando o agradável perfume das melhores intenções do mundo. O salvador tenta fazer o outro acreditar que suas intenções são puras e cristalinas, e caso ele cometa algum erro, isso não tem valor, pois sua intenção era boa e isso que importa. Com essa atitude, o salvador procura algumas vezes se isentar de qualquer responsabilidade no auxílio prestado.
O papel de salvador é muito frequentemente encontrado em religiosos fanatizados por suas crenças. Alguns fiéis podem se comportar como verdadeiros salvadores no trato com outras pessoas a fim de seguir a risca seus dogmas religiosos. O salvador religioso acredita que, caso ele seja uma pessoa boa e caridosa, seu lugar estará bem guardado no céu, ou ele conquistará um bom karma para na próxima vida evitar o sofrimento desta. Algumas vezes os salvadores religiosos fazem uma negociata com Deus pensando, até mesmo de forma inconsciente “Deus, eu ajudei fulano de tal, agora você me ajude em tal situação”.
Existem muitos salvadores em diversas profissões, principalmente nas profissões relacionadas a saúde e ao bem estar humano. Médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas, etc, são muitas vezes vítimas de sua própria neurose salvacionista. Estes podem acreditar que precisam de todas as formas salvar, curar e ajudar outras pessoas, e sofrem quando não conseguem seu intento. Aqui também existe um sentimento de superioridade inconsciente que nos convence de que só seremos bons profissionais se conseguirmos ajudar todas as pessoas em todas as condições, o que obviamente é fantasioso e irreal. Esse instinto salvacionista das profissões acomete principalmente jovens recém-formados que querem mostrar serviço e se firmar como profissionais bem sucedidos e com boa reputação.
É muito comum também encontrarmos homens que querem salvar mulheres e assim obterem benefícios juntos a elas, e também mulheres que acreditam serem capazes de ajudar os homens, principalmente maridos ou namorados cujo relacionamento não vai bem. A esposa pode fantasiar-se salvando o marido de algum mal que ele possua, e assim evita enxergar que o problema não está no marido em si, mas sim no relacionamento de ambos ou mesmo nela. Querer salvar o outro pode indicar uma covardia em não admitir que nosso casamento acabou e em tomar a decisão devida com o divórcio, ou o fim do namoro. Muitas mulheres se enganam de que os parceiros podem ser salvos para evitar um término indesejado o qual elas por medo tentam de todas as formas evitar.
Fica claro que o papel de salvador é um completo atraso de vida. Nele se confunde altruísmo com covardia, caridade com desejo de superioridade, auxílio com mimo e superproteção, prestar a ajuda necessária com “resolver” a vida da pessoa. O salvador fica encarcerado no desejo de evitar sua própria vida tomando parte na vida dos outros, e assim perde aquilo que é essencial: ele mesmo.
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