Calagem (Projeto "Tatu") - Ana Primavesi
Trechos do livro "Pergunte ao solo e às raízes".
Os solos tropicais e subtropicais em sua maioria com argila caolinítica, facilmente são ácidos, até muito ácidos. Quem está acostumado de lidar com solos montmoriloníticos ou esmectíticos, como ocorre em grande parte da Europa e EUA não aceita esta acidez dos solos.
Naqueles locais, solos que se prezem têm 80% de seu complexo de troca tomado por cálcio. Nos trópicos, o cálcio chega, na melhor das hipóteses, a 40%, o que é ridículo para os do Norte, onde o cálcio têm a função de agregar os solos e criar um sistema poroso. Aqui nos trópicos e subtrópicos, essa função é do alumínio e do ferro, o que os solos dos países do Norte também nao aceitam, porque alumínio, para eles, somente pode ser tóxico e tem de ser combatido pela calagem.
As pessoas dos países do Norte também não se conformam que nossos solos são pobres por unidade de volume, por exemplo, por decímetro cúbico ou por quilograma. Até muito pobres: 13 a 50 vezes mais pobres que os solos do Norte. E como para eles lá tudo está certo e aqui tudo errado, então tinha de ser até um ato de “salvamento” fazer um programa de calagem para os solos ácidos, especialmente porque pretendiam mandar suas novas variedades adaptadas a elevados níveis de NPK e, naturalmente, cálcio.
Como as universidades americanas acharam por bem apadrinhar as universidades do hemisfério Sul, como as do Brasil, mandaram especialistas em calagem, que determinavam a quantidade necessária por meio de sua famosa fórmula do SMP, desenvolvida para os solos ricos do Norte. Nasceu o igualmente famoso Projeto Tatu. Escolheram a região de Santo Ângelo, RS. O governo deu créditos para calcário e os especialistas norte-americanos incentivaram os agricultores a aplicá-lo, até 35 t/ha em uma única vez.
Quando os agricultores se queixaram de que suas terras agora não produziam mais nada, foram taxados de estúpidos e renitentes. Milho e trigo de fato não produziram mais, não queriam crescer, porque nesses solos, como poucos micronutrientes por unidade de volume, o calcário desequilibrou tudo. Os elementos que faltaram foram zinco e manganês, mas logo se seguiram ferro, boro e outros. Foi uma catástrofe, mas quem a denunciava era chamado de comunista. Claro, tinha de ser comunista, porque era contra os norte-americanos, nos tempos da Guerra Fria. Mas ninguém era contra os consultores do Norte, mas sim contra aquelas calagens loucas que arruinavam os solos e os agricultores. Quem mandou eles plantarem milho e trigo? Poderiam ter plantado soja, que suportava mais o calcário. O mais curioso foi que os solos brasileiros não eram agregados pelo cálcio, mas, ao contrário, perdiam sua estrutura porosa e se tornaram adensados e duros, porque a matéria orgânica se decompunha num piscar de olhos e o milagre químico se tornou uma calamidade biológica, o que também era inaceitável. Na era da tecnologia químico-mecânica ainda depender da biologia como nos tempos antigos?
Como a discussão se tornou cada vez mais acirrada, a Assembleia Legislativa de Porto Alegre resolveu fazer uma reunião entre as duas partes: pró e contra a correção radical do pH. Mas os jornalistas não queriam que suas notícias atrasassem e não se importavam muito em saber quando essa reunião ocorreria exatamente e qual o resultado. Agiram como os colegas ingleses: publicaram o discurso de coroamento do último rei da Inglaterra um dia antes de ser pronunciado, e melhor que o verdadeiro. Nesse sentido, o resultado da reunião sobre calagem foi noticiado um dia antes como: "Unanimemente favorável a estas calagens elevadas e de uma só vez, de acordo com a informação dos deputados que patrocinavam esse encontro". Como o resultado da discussão já havia sido publicado antes, os que eram contra resolveram ficar calados. Foi um pequeno escândalo.
Nessa briga entre especialistas, ninguém pensou em perguntar ao solo como ele reagiria. O solo simplesmente decaiu biologicamente e se desequilibrou quimicamente. Ele ficou duro e muito pobre. Durante mais que 40 anos se lutou por sua recuperação. A região tinha perdido sua fertilidade e parecia quase desértica. Os promotores brasileiros dessas calagens se arrependeram amargamente do que tinham feito e se tornaram defensores do solo e das plantas.
Não tentaram mais impor técnicas ao solo. Agora perguntam humildemente às plantas o que acham da tecnologia e do estado do solo que dela resulta. Preocupam-se com os agregados e os poros do solo e a infiltração de água e de ar, e com as raízes das plantas e seu desenvolvimento. Provavelmente descobriram que os solos tropicais e subtropicais são fundamentalmente diferentes dos de clima temperado. Não porque Deus tenha se enganado, mas exatamente porque clima, solo e plantas estão sincronizados para cada ambiente. Solo tropical é o que as plantas necessitam neste tipo de clima.
Pergunte seu solo se ele vai aguentar a tecnologia que se quer implantar e pergunte às raízes das plantas se elas conseguem se desenvolver nessas condições.
Marcadores: Agroecologia, Ana Primavesi
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