sábado, 11 de fevereiro de 2012

Daniel - Mateus Pratagy

Foi correndo até o outro lado da rua só pra ver que não ia dar tempo de falar com ela. Com medo de gritar na frente de todo mundo, falou seu nome em voz alta, mas não o bastante para ser ouvido. Ela pegou o ônibus, e partiu. Embora não soubesse levantar a voz como seu pai fazia, bem que Daniel podia gritar mais alto, de modo que ela virasse a cabeça para trás e reparasse que ele ainda estava ali. Mas não, e se arrepende até hoje por isso. É um daqueles fatos que ainda acontecem na nossa mente todos os dias, de formas diferentes. É aquele ponto decisivo no qual você falhou, e Daniel sabia muito bem disso. Estava na hora de mudar, de fazer valer a pena o que quer que acontecesse dali pra frente.
Mas como? Parece que tudo é uma roda viva. A cor do céu, a comida na mesa, a mulher na cama. Até a goteira continua lá, nos muitos dias de chuva. É sempre assim, uma coisa imutável. Claro que repetir as coisas é enfadonho, e pra tudo há um adjetivo idiota que não precisa estar ali, estão simplesmente porque não sabemos nos desvencilhar do que é desnecessário. Talvez viver do que apenas lhe é importante seja o segredo para Daniel. Há tanta coisa que se impermeou na sua vida que não faz mais sentido hoje em dia. Ou mesmo nunca fizeram sentido. A roupa suja no varal, pra quê? Se ele pode jogar tudo na merda do lava-roupas? Pra que malhar, se ninguém se importa com o seu físico? Que tal virar escravo de si mesmo?
Não tem como perder tempo, já começou. As paredes que estavam pintadas  havia uma semana já começavam a desmanchar, e o encanamento a arrebentar, todinho, cano por cano. Parecia que uma pedra enorme de quarenta e sete quilos estava posicionada sobre o seu peito e a única coisa que você podia fazer era gritar. E Daniel, desta vez, tem coragem para gritar. Por que o que não se pode fazer sozinho que você faz nos seus sonhos? As maravilhas, a privada limpa, e essas coisas aleatórias após cada vírgula ditam a repetição. Tão condenada, tão vivida, e agora morrida.
Daniel corre atrás, mais uma vez. Atravessa a rua no sinal vermelho, passa por baixo de um veículo, pega carona numa bicicleta. E grita daquele jeito que sempre quis. E dessa vez nenhuma corda vocal se pôs a limitar sua vontade, de modo que janelas quebrassem de ressonância. Caiu no chão, deitou nos seus braços e deu um longo sorriso, mais longo que o seu próprio rosto. De apatia já basta, e mais um beijo não vai machucar ninguém. Pegou sua bicicleta jogada no meio-fio e foi-se embora pra casa, com aquele gosto de mel na boca.
2
Daniel era um rapaz de classe média, não tinha mais nada pra fazer nessa vida a não ser viver. Parece ser uma coisa muito fácil de ser entendida, é o pior que é mesmo. Todos aqueles sonhos de criança, o idealismo barato, qualquer coisa que eu possa escrever aqui, isso mesmo, tudo isso, estava morto na vida de Daniel. É lógico que ele ainda tinha a opção de reverter tudo isso e fazer valer a pena mais uma vez, como naquela vez na qual andou de bicicleta em volta do lago. Mas ele simplesmente desistiu, tomou cianureto e disse adeus ao mundo. Mentira, não foi isso. Vocês fazem questão de saber mesmo?
Tudo ainda estava lá, o lençol desarrumado. Daniel nem fazia questão de arrumar. Já estava cansado de fazer isso todos os dias, de fazer com que suas frases fossem tão curtas. É como se fosse um vício por um pontinho redondo. Talvez seja por isso que Daniel nunca fumou, seu vício era esses pingos de tinta azul. Seus vizinhos diziam que podia até ver os mortos, como se visse quem ele queria que estivesse ali, quem faltasse. Tinha essa habilidade de botar o que não estava lá no que estava lá. Isso fazia com que até o cobertor que não esquentava tanto, esquentasse mais um pouco.
Essa era a sua qualidade. Tirava boas ideias até mesmo de um capítulo de novela das oito. Podia ir no banheiro fazer xixi mas não perder o fio da meada de um filme chato. E até o filme chato podia ficar legal se ele se proposse a achar que não tinha entendido.
Daniel dormiu tranquilo naquele dia de segunda. Não incomodou ninguém, só sujou um pouco a pintura das paredes. Mas é difícil os próximos moradores relamarem, devido a circustância. Não teve filhos, não era um rapaz muito ligado nisso. Ligado mais na cor do céu, na comida na mesa, no amor na cama.
3
O erro está na abordagem. Falar sobre uma pessoa sem conhecer seu ambiente, seus conhecidos... É um erro, definitivamente. Então não é besteira falar que Daniel é um erro, porque seu ambiente era só um e seus conhecidos eram vários, embora se você pudesse separar por categorias, o resultado fosse um. A graça está em dissecar o desinteressante, o que a gente vê todo dia.
Daniel via o rosto dela todo dia, durante o almoço. O arroz, o cabelo; o feijão, a olheira; a farofa, o nariz; o bife, a boca. Engraçado como esse esforço de imaginação não era nada de esforço, pelo contrário. Pelas contas, das pessoas que já tinha perdido há muito tempo, nem almoço nem jantar nem café da manhã. Fazia tão mal de não fazer o que era pra fazer? E quem ditava o que era pra fazer, afinal?
O erro mesmo, não estava na abordagem. Estava no que ele tanto se importava em fazer: ouvir os outros. E se todos falassem a mesma coisa, é como se só existisse uma coisa a se fazer. Mas Daniel nunca percebeu que aquilo era o seu maior erro, e acabou que deixou um legado ridículo pra trás. Só uma caneta usada, com a qual ele costumava fazer pontinhos azuis ridículos na parede do banheiro. Tinha de desistir, porque lhe falaram pra desistir. E foi o que aconteceu. E está escrito nessas páginas, cheias de pontinhos pretos, mas que poderiam ser azuis.

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