sábado, 20 de outubro de 2012

Trechos de Memórias Alcoólicas - John Barleycorn - Jack London 1913


43 Mas este não é um mundo de fretes livres. Paga-se de acordo com uma férrea tabela de preços - para cada demonstração de força de vontade, a fraqueza correspondente: para cada ascensão, uma queda; para cada fictício momento divinal, um tempo equivalente de lama abjeta. A cada proeza de dias longos e telescópicos, de semanas e semanas de vida constituídas de instantes loucos e magníficos, deve-se pagar o preço da vida abreviada, acrescido, muitas vezes, de juros de usurário.

Intensidade e duração são inimigos tão antigos quanto fogo e água. Mutuamente destrutivos. Incapazes de coexistência. E John Barleycorn, por mais poderoso necromante que fosse, continua tão escravizado à química orgânica como todos os mortais. Pagamos sempre por todas as nossas ousadas maratonas, John Barleycorn está impossibilitado de interferir e impedir o pagamento justo. Ele pode nos levar às alturas, sim, mas não consegue nos manter lá, do contrário seríamos todos devotos. E não existe devoto que queira pagar as sarabandas malucas promovidas por John Barleycorn.


46 O jogo não valia a pena. O preço era muito alto. Eu não tinha constrangimentos morais. Minha náusea era puramente física. Aqueles momentos de exaltação não justificavam horas de desgraça e aflição.


-47 Eu tinha vislumbrado uma miríade de sinais, todos eles sedutores e inflamados, de um mundo além do meu mundo, e para o qual estava tão adestrado quanto os dois rapazes que beberam comigo. Descobri o segredo da alma dos homens. Descobri o segredo da minha alma e encontrei nela potencialidade e grandezas insuspeitadas.


Sim, aquele dia sobressaiu entre todos os meus dias. Até hoje ele se destaca. A lembrança está marcada a ferro quente no meu cérebro. Mas o preço cobrado foi muito alto.


Aguardente não combinava comigo. Era abominável. Mas apesar disso, as circunstâncias iriam me impelir de novo para John Barleycorn, impelir-me sempre, até que depois de longos anos chegou o tempo em que pude encarar John Barleycorn em todas as tocas habitadas pelos homens; encará-lo e saudá-lo como benfeitor e amigo. E detestá-lo e odiá-lo o tempo todo. Sim, ele é um amigo estranho, esse John Barleycorn.


212 A velha e longa doença que fora simplesmente uma enfermidade intelectual, recrudesceu. Os antigos fantasmas, de há muito sepultados, levantaram novamente as cabeças. Porém, eram fantasmas diferentes e mais mortais. Os velhos fantasmas, intelectuais em sua origem, tinham sido enterrados por uma lógica sã e normal. Agora, no entanto, eram levantados pela Lógica Branca de John Barleycorn, e John Barleycorn nunca impede os fantasmas de se erguerem.


Como descrever esta Lógica Branca aos que nunca a experimentaram? Talvez seja melhor afirmar antes de tudo a impossibilidade de tal descrição. Consideremos a Terra do Haxixe, por exemplo, a terra onde predominam enormes extensões de tempo e de espaço. Em anos anteriores eu fizera duas memoráveis jornadas àquela terra distante. Minhas aventuras ali estão gravadas nos mínimos detalhes em meu cérebro. Contudo, tenho tentado inutilmente, com infindáveis palavras, descrever qualquer pequena fase particular a pessoas que não viajaram até aquela terra.


-213 Eu utilizava todas as hipérboles da metáfora e narrava então o que séculos de tempo e abismos de agonia e horror inimagináveis podem ser obtidos em cada intervalo de todos os intervalos entre as notas de uma canção veloz tocada com velocidade no piano. Falo durante uma hora, elaborando aquela fase da Terra do Haxixe, e no fim verifico que nada lhes disse. E quando sou incapaz de lhes transmitir a vastidão das coisas terríveis e maravilhosas, sei que não consegui dar-lhes a mais leve idéia da Terra do Haxixe.


Mas, se me permitem conversar com outro viajante daquela região misteriosa, de imediato serei compreendido. Uma frase, uma palavra transporta imediatamente à mente o que horas de palavras e frases não conseguem levar ao espírito do não-viajante. Por conseguinte, é no reino de John Barleycorn que a Lógica Branca reina. Aos que por lá não viajaram, o relato do viajante deve parecer sempre ininteligível e fantástico. No melhor dos casos, posso pedir aos não-viajantes que se empenhem em acreditar na minha narrativa.


Pois existem intuições fatais da verdade que residem no álcool. Parece haver várias categorias de verdade neste mundo. Algumas espécies de verdades são mais verdadeiras que outras. Alguns tipos de verdade são mentiras, e tais tipos são aqueles de maior valor de uso para a vida que se deseja compreender e viver. De imediato, ó leitor não-viajante, veja como é lunático e blasfemo o reino que estou tentando descrever na linguagem da tribo de John Barleycorn. Não é a linguagem da tua tribo, daqueles que resolutamente evitam as estradas que levam à morte e trilham apenas as estradas que conduzem à vida. Pois existem estradas e estradas, e quanto à verdade, existem categorias e categorias. Mas tem paciência. Pelo menos, através do que parece nada mais que queixumes verbais, tavez recolhas, por acaso, um fraco vislumbre dos panoramas de outra terras e tribos.


214 a velhice, apesar dos pesares, é decente, digna e valiosa, embora idade avançada signifique um espantalho pele e osso na carroça de um mascate, tropeçando atordoado numa servidão sem misericórdia  e numa lenta desintegração até o fim - o fim, a partilha de suas partes (de sua carne sutil, dos seus ossos rosados e elásticos, de seus sucos e fermentos, e de toda aquela insensatez que o animou) [...] até o último cambaleio do seu claudicante final, esse cavalo de carroça deve suportar as determinações da verdade menor que é a verdade da vida, e que faz a vida possível de nela se persistir.


Esse cavalo de carroça, como todos os outros cavalos, como todos os outros animais, incluindo o homem, está cego para a vida e embotado para a razão. Viverá - não importa a que preço. O jogo da vida é bom, conquanto tudo na vida se resuma em sofrimento, e embora no final todas as vidas percam o jogo. Esta é a categoria de verdade que se obtém, não para o universo, senão para as coisas vivas, se estas perdurarem por um curto espaço, antes de morrerem. Esta categoria de verdade, não importa o quanto errônea venha a ser, é a categoria sã e normal da verdade, a categoria racional da verdade em que a vida deve acreditar a fim de viver.


215 Ao homem, considerado isoladamente entre os animais, foi concedido o terrível privilégio da razão. O homem, com suas faculdades mentais, pode penetrar a embriagadora mostra de coisas e perscrutar um universo descaradamente alheio a ele e a seus sonhos. Pode fazer isso, mas não lhe fica bem fazê-lo. Para viver, e viver com intensidade, para borbulhar de vida, para estar vivo (o que é ser o que ele é), é bom que o homem seja cego para a vida e embotado para o sentido da razão. O que é bom e verdadeiro. E esta é a categoria de verdade, por menor que seja, que o homem deve conhecer e tomar como guia de seus atos, com a irrespondível certeza de que é verdade absoluta, e que, no universo, nenhuma outra categoria de verdade ele virá obter. É bom que o homem aceite pelo valor nominal os embustes da razão e os abismos da carne, e através dos nevoeiros da sensibilidade busque as tentações e mentiras da paixão. É bom que ele não veja nem sombras nem futilidades, e tampouco seja atraído por suas luxúrias e rapacidades.


E o homem faz assim. Homens incontáveis têm colhido um lampejo desse outro tipo mais verdadeiro de verdade, e dele recuado. Homens incontáveis têm passado pela longa enfermidade e vivido para narrá-la e deliberadamente esquecê-la até o final de seus dias. Eles viveram. Eles se realizaram na vida, porque a vida é o que eles foram. Eles fizeram bem.


E eis John Barleycorn com a maldição atirada sobre o homem de imaginação, que está cheio de vida e desejo de viver. John Barleycorn envia sua Lógica Branca, o mensageiro prateado da verdade além da verdade, a antítese da vida, cruel e oco como o espaço interestelar, fraco e congelado como o zero absoluto, deslumbrante com a geada da lógica incontestável e do fato inesquecível. John Barleycorn não deixará o sonhador sonhar, o vivedor viver. Ele destrói nascimento e morte, dissipa em névoa o paradoxo do ser, até que a sua vítima explode, como em "The City of Dreadful Night": "Nossa vida é um logro, nossa morte é um abismo negro". E os pés de tão assustadora intimidade começam então a palmilhar o caminho da morte.


217 Volto às experiências pessoais e aos efeitos que a Lógica Branca de John Barleycorn causou em mim. Na minha aprazível fazenda do Vale da Lua, com o cérebro toldado de álcool durante meses, me sinto oprimido pela tristeza cósmica que sempre foi herança da humanidade. Em vão eu me pergunto porque estou triste. Minhas noites são cálidas. Meu telhado não tem rombos. Tenho comida de sobra para todos os caprichos do apetite. Me cercam todos os confortos possíveis. Em meu corpo não há dores nem sofrimentos. A velha máquina de carne continua bem azeitada, funcionando. O cérebro e os músculos não estão esgotados. Tenho terra, dinheiro, poder, reconhecimento mundial, a consciência de que faço jus a um galardão pelos serviços prestrados a outros -a companheira que amo, filhos que são a minha própria carne. Tenho feito e continuo fazendo o que um bom cidadão do mundo faria. Tenho construído casas, muitas casas, e cultivado centenas de acres. E quanto a árvores, já não plantei cem mil? Por toda a parte, de qualquer janela de minha casa, posso olhar fixamente essas árvores da minha prosperidade, que se erguem altaneiras em direção ao sol.


-218 Com efeito, minha vida tem incluído lugares agradáveis. Mil homens em um milhão não têm a minha sorte. E no entanto, com toda esta imensa boa sorte, estou triste. E estou triste porque John Barleycorn está comigo, porque nasci no que as gerações futuras chamarão de idade negra, antes da civilização racional. John Barleycorn está comigo porque em todos os dias da minha despercebida juventude John Barleycorn esteve acessível, me chamando e me atraindo em todas as esquinas, e em todas as ruas entre uma esquina e outra. A pseudocivilização em que nasci concedeu por toda a parte alvará de funcionamento a lojas que vendem o veneno da alma. O sistema de vida foi organizado de tal maneira que eu (e milhões como eu) fui induzido e arrastado e empurrado para as lojas vendedoras de veneno.


Venha andar comigo, num dos meus inúmeros estados de tristeza em que John Barleycorn me mergulha com frequência. Cavalgo por minha bela fazenda. Monto num bonito cavalo. O ar cheira a vinho. As vinhas, numa sucessão de colinas, estão avermelhadas pela labareda do outono. Do outro lado da montanha Sonoma, franjas de névoa marinha avançam devagar. O sol vespertino arde do céu modorrento. Tenho tudo para estar contente por estar vivo. Estou cheio de sonhos e mistérios. Sou sol e ar e flama. Sou vital, orgânico. Movimento-me, tenho o poder do movimento, comando o movimento da coisa viva que me transporta. Estou possuído pelas pompas do ser, conheço paixões e inspirações orgulhosas. Tenho dez mil augustas conotações. Sou um rei no reino da razão e calco a superfície do pó que não se queixa...


-219 E no entanto, fito com olhos preconceituosos toda essa beleza e maravilha ao meu redor, e com preconceito mental penso na lastimável figura que  faço neste mundo que passou tanto tempo sem mim e que voltará a permanecer sem a minha presença. Relembro os homens que arrebentaram corações e nervos neste solo teimoso que agora me pertence. Como se algo imperecível pudesse pertencer ao perecível! Aqueles homens desapareceram. Eu também desaparecerei. Aqueles homens trabalharam, limparam a terra e plantaram, olhando fixamente com os olhos doridos, enquanto descansavam os corpos do duro labor, aqueles mesmos crepúsculos e poentes, a glória outonal dos vinhedos e os farrapos de névoa em lentas evoluções do outro lado da montanha. E eles se foram. E eu sei que também irei um dia desses.


Irei? Estou indo. No meu maxilar estão adaptados artifícios de dentista que substituem partes já desaparecidas. Jamais voltarei a ter os polegares do meu tempo de jovem, prejudicados irreparavelmente por aquelas lutas romanas e brigas de socos. Aquele soco na cabeça de um sujeito, cujo nome foi esquecido, danificou o polegar de uma vez e para sempre. Uma escorregadela em luta-livre estragou o outro polegar. Minha barriga encolhida, da época em que fui mensageiro, entrou para o limbo da memória. As juntas das pernas que me sustentam já não são tão eficazes como antes, quando, em selvagens dias e noites de trabalho pesado e farras, eu as forcei, esfolei e rompi. Nunca mais cometerei a ousadia de oscilar vertiginosamente no alto do cordame, em meio à escuridão fechada de uma tempestade marítima. Nunca mais poderei correr com os cães de trenó pelos quilômetros sem fim da trilha do Ártico.


Estou ciente de que dentro deste corpo em desintegração, que está morrendo desde que nasci, carrego um esqueleto; que sob a capa de carne do que é chamado meu rosto existe um ossudo crânio sem nariz. Nada disso me assusta. Ter medo é ser saudável. O medo da morte prolonga a vida. Mas a maldição da Lógica Branca é dessas que não infunde medo. A doença mundial da Lógica Branca faz uma pessoa portar-se jocosamente diante do Sem Nariz e zombar de todas as fantasmagorias dos vivos.


-220 Olho ao redor enquanto cavalgo, e em cada mão eu vejo a impiedosa e infinita dissipação da seleção natural. A Lógica Branca insiste em abrir livros há muito fechados, e em cada parágrafo e capítulo afirma beleza e a maravilha que eu observo, mas em termos de futilidade e poeira. À minha volta, ouço murmúrio e zumbido dos vivos que, como um enxame de mosquitos, silvam por algum tempo seus débeis queixumes no ar agitado.


Retorno à fazenda. O crepúsculo caiu, os animais de presa saíram das tocas. Observo o piedoso e trágico jogo da vida que se alimenta da vida. Aqui não há moralidade. Somente no homem existe moralidade, afinal o homem foi quem a criou - um código de ação em benefício dos vivos e que faz parte da categoria inferior de verdades. Contudo, tudo isso eu já sabia, nos dias enfastiados da minha longa enfermidade. As muitas verdades que eu, com tanto êxito, me empenhei em esquecer; verdades tão sérias que me recusei a levá-las em conta, com elas brincando delicadamente, isso mesmo, de forma tão delicada como se fossem cães adormecidos no fundo da consciência e que eu não queria despertar. Eu não os provoquei, deixei-os dormir. Pois eu era muito sábio, malignamente sábio para querer despertá-los. Só que agora a Lógica Branca quer porque quer despertá-los para mim, pois a Lógica Branca, mais valente, não teme nenhum dos monstros dos sonhos terrenos.


-221 "Deixe que os doutores de todas as escolas me condenem", a Lógica Branca me sopra enquanto eu cavalgo. "E daí? Eu Sou a verdade. Você a conhece. Você não pode me combater. Dizem que eu provoco a morte. E daí? É verdade. A vida mente a fim de viver. A vida é uma ciranda louca na crista da onda, em que surgem aparências de fortes marés enchente e vazante, acorrentadas às rotações da luas fora do nosso alcance. Aparências são fantasmas. A vida é terra fantasmal onde as aparências mudam, se transubstanciam, se permeiam entre si e entre todas, aparências ou não, que sempre tremulam, esmaecem e se apagam, apenas para voltarem outra vez com novas aparências, como outras aparências. Você é uma dessas aparências, composta de incontáveis aparências oriundas do passado. Tudo o que uma aparência pode fazer é miragem. Você conhece miragens do desejo. Tais miragens são as impensáveis e incalculáveis agregações de aparências que o assediam e o formam do fundo do passado, e que o varrem, disseminando-o em outros impensáveis e incalculáveis aglomerados de aparências a fim de povoar a terra fantasmal do futuro. A vida é fantasmal, ela passa. Você é uma aparição. Através de todas as aparições que o precederam e que compõem as suas partes, você se orgulha com a sua algaravia do lodo evolucionário, e ainda inarticulado você passará, interfundindo-se, permeando-se com a procissão de aparições que o sucederão."


E naturalmente tudo é irrespondível, e, enquanto cavalgo por entre sombras crepusculares, escarneço do Grande Fetiche a que Comte chamou de mundo. E me lembro de outro pessimista de sensibilidade que afirmou: "Transitórios todos são. Os que nascem devem morrer e, mortos, ficam contentes por estarem em repouso".


Mas aqui, varando o crepúsculo, aproxima-se um que não se sente satisfeito por estar em repouso. É um operário da fazenda, um velho, um imigrante italiano. Tira o chapéu para me saudar, com a maior servilidade, porque, certamente, para ele eu sou o dono da vida. Eu o alimento, dou-lhe abrigo e vida. Ele tem trabalhado como um burro de carga a vida inteira, e vivido com menos conforto do que os meus cavalos em seus estábulos atapetados de palha. Ele é aleijado. Arrasta os pés quando anda. Tem um ombro mais alto do que o outro. Suas mãos são garras nodosas, repulsivas, horríveis. COmo aparição, ele é um espécime bem miserável. Seu cérebro é tão estúpido e quanto feio é o corpo.


-222 "Seu cérebro é tão estúpido que ele ignora ser uma aparição", a Lógica Branca me diz com uma risada escarninha. "Ele é um bêbado da razão. É o escravo do sonho da vida. Tem o cérebro cheio de sanções e obsessões superracionais. Acredita em outro mundo transcendente. Deu ouvidos aos caprichos dos profetas que lhe sopraram a suntuosa bolha do Paraíso. Ele sente afinidades inarticuladas com não-realidades invocadas por si mesmo. Vê visões penumbrosas de si mesmo, titubeando fantasticamente pelos dias e noites do espaço e das estrelas. Ele está convencido, além da sombra de qualquer dúvida, de que o universo foi feito para ele, e que é seu destino viver para sempre nos reinos imateriais e supersensuais que ele e sua espécie têm construído com o material da aparência e da decepção.


"Mas você, que tem aberto livros e que partilha da minha confiança extrema - você o conhece pelo que ele é, irmão seu e irmão do pó, uma brincadeira cósmica, um passatempo da química, uma besta paramentada que se levantou da pilha da bestialidade mais aguda por obra e acidente de dois dedos grandes do pé. Ele é irmão igualmente do gorila e do chimpanzé. Ele bate no peito quando tem raiva, ruge e treme com cataléptica ferocidade. Ele conhece impulsos monstruosos, atávicos, e está composto de todas as maneiras de pedaços de abismo e de instintos esquecidos."


"E, no entanto, ele sonha que é imortal", eu contesto fracamente. "É maravilhosos para um punhado de barro tão estúpido montar nos ombros do tempo e cavalgar as eternidades."


"Bah!", é a réplica. "Você acaso pretende fechar os livros e trocar de lugar com esta coisa que não passa de um apetite e um desejo, um joguete do estômago e dos rins?"


"Ser estúpido é ser feliz", eu retruco.


"Então o seu ideal de felicidade é um organismo semelhante à geléia, flutuando num mar tépido, sem ondas e crepuscular, ahn?"


223 "Ora, a vítima não pode combater John Barleycorn!"


"Um passo a menos para a felicidade aniquiladora do Nirvana de Buda", acrescenta a Lógica Branca. "Ah, be, eis aí a sua casa. Anime-se, homem, tome uma bebida. Conhecemos bem, nós os iluminados, você e eu, a loucura e a farsa."


E em meu pequeno quarto com as paredes cobertas de livros, que são mausoléus dos pensamentos dos homens, eu tomo meu copo, e outros copos, e os cãoes que dormiam nos recessos do meu cérebro eu os acordo e os atiço contra as muralhas do preconceito e da lei e por todos os astuciosos labirintos da superstição e da crença.


"Beba", diz a Lógica Branca. "Os gregos acreditavam que os deuses lhe deram o vinho a fim de que pudessem esquecer a miserabilidade da existência. E não esqueça o que Heine disse."


Sim, eu bem me lembro das palavras ardentes daquele judeu. "Com o último suspiro, tudo se vai: alegria, amor, tristeza, macarrão, teatro, limeiras, gotas de framboesa, a força das relações humanas, o mexerico, o ladrar dos cães, o champanhe".


"Sua luz branca e clara é doença", eu digo à Lógica Branca. "Você mente."


"Por lhe transmitir uma verdade tão forte", ela retruca com ironia.


"Ai de mim, é verdade. A vida é tão desgovernada!", reconheço com tristeza.


"Ah, muito bem, Liu Ling foi mais sábio que você", a Lógica Branca observa. "Lembra-se dele?"


Concordo com um aceno de cabeça. Liu Ling, um alcoólatra do grupo de poetas beberrões que se denominavam os Sete Sábios do Túmulo de Bambu, e que viveu na China mais de um século atrás.


-224 "Foi Liu Ling", incita a Lógica Branca, "que declarou que para um bêbado os assuntos do mundo não passam de lentilhas d'água num rio. Muito bem. Beba outro scotch, e deixe que as aparências e as decepções se transformem em lentilhas d'água num rio".


E enquanto me servia e bebericava meu scotch, lembrei-me de outro filósofo chinês, Chuang Tzu, que, quatro séculos antes de Cristo, desafiou esta terra de sonhos que é o mundo, ao dizer: "Como vou saber que os mortos se arrependem de se terem apegado à vida? Os que sonharam com o banquete despertam para as lamentações e as tristezas. Os que sonharam com lamentos e tristezas despertam para se juntarem à caçada. Enquanto sonham, eles não sabem que sonham. Alguns chegam a interpretar o sonho que estão sonhando; e somente quando acordam sabem que foi um sonho... Os tolos pensam que agora estão despertos, e se gabam de saber se são mesmo príncipes ou camponeses. Confúcio e você são, ambos, sonhos; e eu, que afirmo que você são sonhos - eu também não passo de um sonho".


"Uma vez eu, Chuang Tzu, sonhei que era uma borboleta pousando aqui e ali, segundo os intentos e propósitos de uma borboleta. Tinha consciência apenas de seguir minhas fantasias como borboleta, e estava inconsciente quanto à minha individualidade como homem. De repente, acordei e eis-me ali, outra vez. Só que agora não sabia se eu era então um homem sonhando com uma borboleta, ou se sou agora uma borboleta sonhando que sou homem."

228 "Esta sua carne lhe pertence? Ou é uma coisa estranha possuída por você? Seu corpo - o que é? Uma máquina para converter estímulos em reações. Estímulos e reações são recordados. Constituem uma experiência. Então você toma consciência de tais experiências. Você é a qualquer momento o que você está pensando naquele momento. Sou eu é ao mesmo tempo sujeito e objeto; afirma coisas de si mesmo e é a soma das coisas afirmadas. O pensador é o pensamento, o conhecedor é aquilo que é conhecido, o possuidor é o conjunto de coisas possuídas.


"Antes de tudo, como você não ignora, o homem é um fluxo de estados de consciência, um fluxo de pensamentos que passaram, cada um pensando ser outro ser, numa infinidade de pensamentos, numa infinidade de seres, um contínuo vir-a-ser mas nunca sendo, um fogo-fátuo de fantasmas em terra fantasmal. Mas isso o homem não aceita de si mesmo. Ele se recusa a aceitar sua própria morte. Ele não morrerá. Viverá novamente, mesmo que tenha de morrer para que isto aconteça.


-229 Ele mistura átomos e jatos de luz, as mais remotas nebulosas gotas de água, picadas sensíveis, lama e massas cósmicas, de cambulhada com pérolas de fé, amor de mulher, dignidades imaginadas, suspeitas assustadoras, arrogância pomposas - e desse material constrói para si mesmo uma imortalidade para espantar os céus e confundir as imensidades. Ele se retorce na sua pilha de esterco e, tal qual uma criança perdida na escuridão em meio a duendes, grita aos deuses que é irmão destes, seu irmão mais moço, um prisioneiro da carne viva que está destinado a ser tão livre quanto eles- monumentos de egotismo criados pelos epifenômenos; sonhos e pó dos sonhos, que desaparecem quando o sonhador desaparece e nada mais são quando o sonhador morre.


Não constituem novidade algumas estas mentiras vitais que os homens a si próprio dizem, aos sussurros, aos murmúrios, como se fossem mágicas e encantos contra os poderes da Noite. Os voodoos e curandeiros e feiticeiros foram os pais da metafísica. A Noite e o Sem Nariz foram os ogres que obstruíram o caminho da luz e da vida. E os metafísicos venceriam, se para isso tivessem de contar mentiras. Eles foram perturbados pela brônzea lei do Eclesiastes, segundo a qual homens morrem como as bestas do campo e seu fim é o mesmo, seus credos foram seus esquemas, suas religiões, suas panacéias, suas filosofias, seus ardis pelos quais eles quase acreditaram que poderiam exceder em astúdia o Sem Nariz e a Noite.


Luzes do charco, vapores de misticismo, sugestões psíquicas, orgias da alma, lamentações nas trevas, gnosticismos misteriosos, véus e tecidos de palavras, subjetivismos ininteligíveis, apalpadelas nas trevas e sussurros, fantasias ontológicas, alucinações psíquicas - eis o material, os fantasmas de esperanças que enchem suas estantes. Olhem só para eles, tristes aparições de homens tristes, loucos e apaixonados rebeldes - seus Schopenhauers, seus Strindbergs, seus Tolstóis e Nietzsches."


"Basta. Seu copo está vazio. Encha-o e esqueça."


-230 Obedeço, pois meu cérebro agora é uma comichão de vermes criados pelo álcool, e enquanto bebo aos pensadores tristes das minhas estantes, cito Richard Hovey:


"Abster-se, não! Vida e Amor, noite e dia,

Se nos oferecem à suas própria feição
E não à nossa. Aceita a dádiva com alegria
Antes que te devorem os vermes do chão."

"Eu o aprisionarei", grita a Lógica Branca.


"Não", respondo, enquanto os vermes me enlouquecem. "Eu conheço você pelo que é, e não o temo. Sob a sua máscara de hedonismo você é o Sem Nariz, e seus caminhos só conduzem à Noite. O hedonismo não tem significação. Também é uma mentira, no melhor dos casos é o compromisso presunçoso do covarde..."


"Eu o aprisionarei!", a Lógica Branca interrompe.


"Mas se esta pobre vida não te satisfaz,

Ora, livre és para findá-la se te apraz
E sem receio de acordar após a Morte."

E eu ri desafiador; pois agora, e por um momento, reconheço a Lógica Branca como o arquiimpostor de todos eles, a soprarem seus cochichos de morte. E ela é culpada de seu próprio desmascaramento, sua química jovial virando as mesas sobre ela própria, seus vermes mordendo as velhas ilusões ainda vivas, ressuscitando e fazendo soar a antiga voz do fundo da minha juventude, dizendo-me outra vez que ainda são minhas as possibilidades e poderes que a vida e os livros me disseram que não existiam.



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